segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Conexões: CAPS Gey Espinheira dialoga com moradores de Pirajá


Identificar o que a população do bairro histórico Pirajá pensa e sente na pele, especialmente quando o assunto é a relação juventude e uso de drogas. Para saber disso, a gerência do CAPS AD III ia Gey Espinheira convidou para participar do I Conexão Favela, o sociólogo Liu Nzumbi e o estudante Sostenes Ribeiro, ambos que, assim, como a maior parte dos presentes, residem e conhecem a realidade de quem mora no bairro.

"Há muito tempo que queremos conversa com a população a fim de saber qual a realidade econômica e social da região e a primeira coisa que pensamos quando realizamos um evento como este é o de pedir licença para entrar no território", explicou o gerente do CAPS, o psicólogo João Martins, durante palestra em que também falou sobre a história do centro, inaugurado a cinco meses,fruto de uma necessidade identificada a quatro anos pelo Ministério Público, sobre a atenção à saúde de crianças e jovens usuárias de drogas no estado.

Parcerias - Sobre a filosofia do centro, João destacou que há o cuidado em não adotar uma perspectiva moral sobre o público atendido no serviço. Ele também reforçou o propósito em criar um conselho local para regulação do serviço e estabelecer parcerias com organizações da comunidade local para reinserção social das crianças e jovens em tratamento.

"Pretendemos não deixar acontecer a criação de pequenos guetos dentro do serviço, pois isso seria a exclusão da exclusão, mas queremos sim, saber que podemos integrar nossos jovens nas atividades culturais e sociais da comunidade, da mesma forma em que teremos o compromisso em ajudá-los no encaminhamento e esclarecimento quanto aos serviços municipais de saúde", esclareceu Martins.

Diagnóstico - Após a apresentação do serviço, o jovem Sostenes Ribeiro explicou quais temores fazem parte do cotidiano dos jovens moradores de bairros populares como Pirajá. Para ele, os embates entre a polícia e o tráfico local, somando-se à falta de infra-estrutura e de oportunidades são as maiores preocupações. "Sentir na pele é ter o receio de sair da 'boca-de-fumo' e ter policiais em busca de traficantes, até mesmo porque a droga não é vendida em farmácia", sintetizou o estudante.

A mesma preocupação quanto às ações da segurança pública no bairro foi pontuada pelo sociólogo Liu Nzumbi, que traçou um panorama da presença dos serviços públicos quando se trata da questão das drogas. "Nós temos aqui a necessidade de dizer que, durante muito tempo, o único tratamento dado [ao usuário] é, de fato, a cadeia ou caixão", sentenciou Nzumbi, ao refletir sobre a propaganda veiculada ano passado por empresas do setor de comunicação.

Novas Conexões - Por outro lado, o sociólogo elogiou a iniciativa do CAPS e considerou que o serviço tornar-se-á uma opção estratégica para promover a mudança desta realidade. "Este é um momento especial, pois temos a oportunidade de discutir com profissionais da rede pública de saúde", afirmou o sociólogo, que concluiu sugerindo a possibilidade de que o projeto continue através da realização de encontros intinerantes.

De acordo com o gerente do CAPS, o projeto terá continuidade, num primeiro momento, a fim de que lideranças de outros bairros do Distrito São Caetano-Valéria também possam expor suas demandas.

Paula Boaventura

(Cetad Observa*)

*Link para o CETAD Observa: http://www.twiki.ufba.br/twiki/bin/view/CetadObserva/ConexoesFavelaPiraja 















Fotos: Tereza Paula Costa

sábado, 16 de outubro de 2010

O batismo do CAPS Gey Espinheira



    7 de setembro, dia da independência no CAPS Gey Espinheira
  
    Com pompa e circunstância, foi inaugurado no dia 11 de agosto o CAPS Gey Espinheira, o primeiro AD III na Bahia. Na cerimônia, foi possível registrar a presença da ampla equipe que trabalha no serviço (63 pessoas), além de colegas ligados à Saúde Mental - mais especificamente ligados a luta antimanicomial e a Redução de Danos - circulando entre políticos, lideranças da comunidade e agentes da mídia. Havia uma grande expectativa sobre o projeto, principalmente porque a população alvo ainda agregava um terceiro elemento que define bem sua singularidade. Este é o primeiro CAPS nacional que foca atenção no uso abusivo de álcool e outras drogas por parte de um público de crianças e adolescentes, ou seja, na prática é um CAPS IA/AD III.
    Entre as palmas e sorrisos possíveis de registrar em meio aos discursos proferidos por algumas personalidades públicas e o descerramento da placa de inauguração, foi possível também registrar uma voz solitária em sentido contrário ao dominante. Um líder comunitário do território levantou um cartaz se mostrando contrário a euforia presente. Ao sair do auditório, ele se dirigiu a alguns integrantes do CAPS afirmando que aquilo dito lá dentro pelas autoridades era uma mentira, pois foi prometido outra coisa: “nós queríamos um centro de saúde mental e não um lugar pra dependentes químicos”. Depois de alguns minutos de interlocução quando ouvimos as demandas desse líder se queixando das condições precárias em que vive a comunidade, apontando como emblemático, o caso de jovem que foi espancado, alvejado e preso por roubar um celular, conseguimos pontuar que nosso propósito era um serviço de saúde mental no sentido mais amplo, o que implica em  não apenas focarmos no abuso do consumo de SPAs, mas estabelecer diálogos e vínculos que favorecessem a qualidade de vida da comunidade. Com os ânimos acalmados, esse líder mostrou pela primeira vez um sorriso e ficou de nos procurar posteriormente para dar corpo a um diálogo.
    Esse foi o acolhimento que os integrantes do CAPS Gey Espinheira receberam no dia de inauguração do serviço, o que não deixou de refletir nas articulações internas nos dias seguintes. Ao mesmo tempo em que havia uma expectativa entre os profissionais de vários setores de saúde sobre a novidade do serviço, havia uma expectativa gerada no  território que era inesperada para os próprios integrantes do serviço. E que não pareça que o acolhimento territorial teve um saldo negativo. Fato é que dias depois recebemos dois outros líderes comunitários que estavam interessados em  dispor do nosso espaço para realizar o batizado de um grupo de 200 capoeiristas adolescentes. Foram muitos gentis na visita - sendo um deles além de mestre de capoeira, oficial militar – e ao final desse encontro firmamos um acordo de mão dupla: estávamos de portas abertas para que eles realizassem o batizado em nossa unidade, e eles se mostraram disponíveis para receber nossos usuários em seus grupos de capoeira. Essa troca nos agradou em demasia, pois um dos nossos pilares estratégicos seria uma reinserção comunitária onde os usuários não fossem recebidos como usuários e sim como seres humanos. Assim, não haveria sentido em formar um grupo de capoeira de usuários. O ideal seria um grupo de capoeira onde estes usuários pudessem atuar como seres humanos.
   Chegou o dia 7 de setembro, a data marcada para o batizado, e por volta de 8h da manhã de um dia de sol, muitos jovens começaram a aparecer no CAPS, e vale ressaltar que não estavam em busca de atendimento. Rapazes e moças entre 13 e 20 anos chegaram com camisetas e calças características de capoeiristas, alguns já marcando a percussão com as mãos e conversando descontraidamente. Num bate-papo com um dos organizadores do evento, ouço seu questionamento sobre o que leva algumas pessoas a usar drogas e ficarem tranquilas, enquanto outras se tornam mais agressivas. Coloquialmente tentei introduzir a configuração entre “sujeito, drogas e setting” pra ponderar que a questão não deve ser resumida à substância. Eis que depois de refletir um pouco, e se afastando de outras pessoas que antes participavam da conversa, meu interlocutor calmamente diz que já foi segurança de Lula e que o presidente teria tido interesse na descriminalização. Sua pergunta agora é: porque será que ele não fez isso? Tentei fazer uma reflexão sobre a pressão política a que um presidente está sujeito, principalmente quando tem projetos que podem ser reprovados pelo seu eleitorado, e que anteriormente  também Fernando Henrique Cardoso havia se comprometido com a causa, mas acabou voltando atrás[1]. Meu interlocutor continuou  ouvindo calado até que pelo seu silêncio excessivo percebi que eu já havia falado o bastante. Ele sorriu em minha direção e com muita tranquilidade disse: “é, vamos ver a capoeira!”
     Num dos salões reservados para oficinas, cerca de 120 pessoas (um número menor do que o originalmente estipulado, mas suficiente para esgotar as dimensões do espaço disponibilizado) se reuniram para o batizado que mobilizou o Gaviões da Lua e outros grupos de capoeira de São Caetano. Capitaneados por Mestre Alex e Seu Loli, dois líderes locais que souberam de nosso serviço através do coordenador do Distrito de Saúde de São Caetano/Valéria – Jossiney – que fez a intermediação do diálogo, os grupos foram chegando e fazendo seus aquecimentos, criando um clima comunitário complementado por alguns parentes e amigos que foram prestigiá-los. Por volta de 10h, após a chegada de todos os grupos e convidados, os serviços foram iniciados, primeiramente com as apresentações, onde foi ressaltado  que o compromisso do nosso serviço, muito além da atenção aos usuários abusivos de álcool e outras drogas, era para com a saúde mental da comunidade do território, o que significa lhes proporcionar uma melhor qualidade de vida e para isto nossas portas estariam sempre abertas. Os líderes do grupo saudaram nossa iniciativa e se comprometeram a nos ajudar no que fosse possível, assumindo publicamente o compromisso de receber em seus grupos de capoeira, alguns usuários do serviço que eventualmente se interessassem em dar prosseguimento a sua reinserção social. O Mestre Alex inclusive afirmou que anteriormente já havia trabalhado com usuários abusivos na tentativa de ajudá-los a resgatar a autoestima.
     Nas três horas e meia seguintes  o ritual de batismo correu tranquilamente e após encerrado, os capoeiristas retornaram para a sede do Gaviões da Lua em São Caetano para compartilhar uma dobradinha e algumas cervejas. Os integrantes do CAPS foram convidados, e o mestre Alex se mostrou muito contente quando alguns destes apareceram no local da festa - seu receio era de que por ser um local muito simples, sua hospitalidade fosse declinada. Os presentes continuaram festejando pela tarde adentro e este específico 7 de setembro ficou registrado não apenas como o dia da independência do Brasil, mas como o dia em que o CAPS Gey Espinheira e seus funcionários foram bem acolhidos por seus visitantes, passando de fato a fazer parte da comunidade do território. O vínculo firmado nesse acolhimento de mão dupla reduziu algumas tensões que parte dos integrantes do serviço estavam elaborando por estarem diante de uma proposta de trabalho sem precedentes. Algumas imagens seguintes registram este batizado, batizado não só dos capoeiristas, mas do próprio CAPS Gey Espinheira.
Tom Valença
 

[1] - e agora que já não é mais presidente, FHC retomou com muita disposição um posicionamento antiproibicionista, como pode ser constatado por sua atuação a frente da  Comissão Latino-americana sobre Drogas e Democracia, ao lado dos ex-presidentes da Colômbia (Gaviria) e do México (Zedillo).




 

 
 
 

 

 

 

 

 



 



 


 
 
 








Fotos: Tom Valença