sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Domingo Cultural II


     No último domingo de 2010, o CAPS Gey Espinheira abriu suas portas para celebrar um momento de cultura ampliada junto ao território que o circunscreve. Aos poucos, numa tarde de calor suave e ressaca natalina, surgiram usuários do serviço acompanhados por amigos, além de moradores da comunidade, inclusive algumas senhoras com seus filhos de colo e companheiros, como também familiares de funcionários da unidade, todos com o intuito de confraternizar e curtir uma programação alternativa ao que geralmente se encontra disponibilizado num domingo que fecha um feriado. Abrindo os serviços da segunda edição do Domingo Cultural, a apresentação do filme Quincas Berro d’Água foi acompanhada por muitos risos descontraídos da platéia, principalmente dos jovens usuários do serviço. Se a história de um usuário abusivo de bebida alcoólica poderia soar arriscada para uma audiência onde alguns integrantes possuem registro de uso abusivo de SPAs, os diretamente implicados reagiram muito bem ao espírito reflexivo da proposta, aproveitando o momento para fazer uma catarse coletiva. Vale notar que o único uso abusivo estimulado e induzido foi o de pipocas, preparadas e ofertadas pela técnica Andrea.
    O bate-papo após a exibição da película serviu para salientar que o aspecto central da obra  não girava em torno do consumo de álcool,  mas do acolhimento que Quincas não encontrou na sua família, e sim entre seus amigos que não se envergonharam dele e não o excluíram de seu convívio nem depois de morto. Após cessarem os risos, entre os usuários e seus amigos houve certa comoção ao perceberem que se eles mesmos sofreram exclusões sociais em função de seus consumos, ainda era possível estabelecer relações de confiança entre seus pares. O personagem Quincas Berro d'Água deixou de ser um mero anti-herói e serviu como um modelo para que alguns usuários refletissem que poderiam se sentir queridos e incluídos em circuitos de relacionamento e vínculos alternativos, e o CAPS Gey Espinheira vem  mostrando ser um desses circuitos.
    No segundo momento da atividade vespertina, a banda Zero Hora – capitaneada pelo oficineiro e menestrel Gil - subiu ao palco e depois de duas músicas de aquecimento foi ganhando a atenção e confiança da platéia que começou a cantar junto e acompanhar com palmas as canções que reconhecia. Com mais duas músicas  a interação se configurou de modo tão forte que a cantora chamou alguns participantes para subir ao palco e cantar e tocar com a banda. Depois de alguma hesitação, usuários do serviço e alguns convidados incentivados pela platéia estavam tão vontade no tablado que foi até difícil a banda retomar seu repertório de origem. A galera cantou Rap, fez percussão e estabeleceu um vínculo que sugere que as oficinas de música oferecidas pelo serviço do Gey Espinheira poderão gerar uma motivação maior para assegurar a participação ativa dos usuários – ficou no ar a idéia de que futuramente as oficinas possibilitem apresentações públicas dos usuários, o que só virá a alavancar sua auto-estima e reinserção. 
    Num processo de mão dupla, quem lançou um olhar para a platéia viu os próprios funcionários do serviço ensaiando passos de dança, o que só ampliou o aspecto integrativo da confraternização.  E não foi só isso. A jornalista Paula Boaventura do Cetad Observa – que, diga-se de passagem, vem realizando um registro imagético com dimensões antropológicas do CAPS  Gey Espinheira desde sua inauguração – em certo momento esteve realizando muito mais uma participação observante do que uma observação participante, e saiu do auditório bastante emocionada. Para completar a vinculação pactuada, ao final da apresentação a banda Zero Hora mostrou interesse em repetir a dose em ocasiões futuras.
    Após tantos bons momentos vividos na tarde do dia 26 de dezembro, os funcionários do Gey Espinheira voltaram pra casa com a sensação de missão cumprida, no que poderia ter sido um enfadonho dia de trabalho enquanto muitos outros descansavam no fim de um feriado. Que assim sejam os Domingos Culturais de 2011.

Tom Valença



 

Fotos: Tom Valença

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